Andrea Dip, ICL Notícias. Recuperado de: https://iclnoticias.com.br/ruinologia-expoe-heranca-antigenero-do-bolsonarismo-e-seus-ecos-no-governo-lula
O relatório “Ruinologia: uma cartografia da política antigênero no governo Bolsonaro (2019–2022)”, publicado este mês pelo Sexuality Policy Watch (SPW), em parceria com o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da Universidade Federal de Minas Gerais (NUH/UFMG) mostra como o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), comandado por Damares Alves, funcionou como um verdadeiro laboratório para a extrema direita, articulando verbas públicas, retóricas ambivalentes e alianças internacionais para desmontar políticas de gênero e diversidade.
Um dos autores desse estudo é João Gabriel Maracci, professor universitário e doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Em entrevista à coluna, ele explica como a estratégia de Damares combinou discursos de conciliação pública com práticas de ataque e desmonte — uma política de “proteção sem promoção” que, ao mesmo tempo em que desmontava conselhos e espaços de participação social, usava emendas parlamentares obrigatórias para se apresentar como aliada da população LGBT+.
A pesquisa também revela como o bolsonarismo transformou a chamada “ideologia de gênero” em gramática de Estado, usando-a até mesmo como categoria oficial em denúncias do DISQUE 100.
Na entrevista João analisa ainda os legados desse período, não apenas na política institucional e no governo Lula, mas também na subjetividade da sociedade brasileira.
Primeiro falando sobre o relatório, o que mais te surpreendeu ou te assustou fazendo as pesquisas?
Ainda no período de transição, Damares ainda não era ministra, mas participou do gabinete de transição e fez um evento que foi midiaticamente divulgado como uma porta otimista para o diálogo e para as boas relações entre ela e os temas da diversidade sexual e de gênero.
Esse evento contou com a participação de muitas organizações conhecidas de ativismo LGBT+, no Brasil.
Paralelamente a essa recepção, ela faz aqueles atos de fala tão conhecidos, de que o menino deve vestir azul e a menina deve vestir rosa, que no Brasil só tem meninos e meninas, príncipes e princesas e tudo mais.
Então, essa ambivalência, antes mesmo do início do mandato, me chamou a atenção.
Ao final da pesquisa, o que me chamou mais atenção foi como que essa política de ambivalências foi conduzida também por um viés financeiro.
Como a transferência de verbas pautou a relação entre organizações e ministério, e de forma muito significativa a retórica de “proteção sem promoção”, que era o que Damares falava que fazia em relação às temáticas LGBT no ministério.
E nessa “proteção sem promoção”, um dos maiores vetores de condução dela foi a transferência de verbas financeiras por parte de emendas parlamentares.
A gente tem um levantamento de todos os empenhos de verba do ministério para ações relacionadas à população LGBT no estudo.
E assim, não é pouca coisa se a gente pensar em um governo de extrema direita. Um pouco dessa verba veio do próprio ministério, mas a maioria dela veio de emenda parlamentar de deputados de esquerda, principalmente do PT.
E aí é uma coisa curiosa, porque a gente vê que o empenho de verbas parlamentares para execução no Poder Executivo em determinado ministério, desde 2015 ele se torna obrigatório.
Então, claro, pode haver algum tipo de burocratização, pode haver algum tipo de impedimento, mas ao fim e ao cabo, a execução da política é obrigatória para o Poder Executivo. Então, a Damares não tinha muitas opções que não executar aquilo que foi deliberado por parte dos parlamentares.
No entanto, ela usa essa execução obrigatória como comprovação pública e também de mobilização ideológica, mostrando que ela sim estava muito preocupada com a população LGBT, à medida que o ministério dela tinha investido toda essa verba em determinados projetos.
O que ela não fala é que essa verba era de execução obrigatória.
Ela fala simplesmente que o ministério — isso é um ato de fala dela, que se repete algumas vezes, principalmente no final do governo, e se repetiu agora numa entrevista recente — executou as emendas sem pedir propina e sem fazer pedágio, ou seja, basicamente atuou dentro da lei, o que não deveria ser mérito de nenhum ministro.
Isso deveria ser o modus operandi da política.
Muitas vezes as pessoas não têm noção do que significou o MMFDH de Damares Alves durante o governo Bolsonaro, não apenas com relação a políticas de gênero e LGBTQIA+ mas também da propagação de ideologias ultraconservadoras. Você pode falar um pouco sobre isso?
De fato, a política de proteção sem promoção relacionada aos temas da diversidade sexual de gênero, encampada pelo Ministério não é muito conhecida.
Assim como não são conhecidas muitas ações do MMFDH em relação a outras áreas de interesse, o que na nossa análise vai fazer com que esse órgão institucional se torne no Brasil um verdadeiro laboratório da extrema direita.
Um laboratório muito funcional, que fez conexões importantes entre o que estava sendo debatido em termos transnacionais com preocupações específicas do Brasil.
E aí, pensando nessas organizações transnacionais, a gente tem que lembrar que o Ministério teve uma participação muito ativa sobretudo em uma organização de países ultraconservadores chamada Consenso de Genebra.
Primordialmente voltada à proibição do aborto, mas também à promoção de um ideal de família heterossexual, um ideal de proteção da infância — não proteção da infância como a gente está discutindo hoje em relação à adultização — proteção da infância em relação à suposta ‘ideologia de gênero’.
Também temos uma participação muito grande em organizações como a Political Network for Values, que é uma organização não-governamental que atua transnacionalmente e que em alguns casos vai inclusive ditar as políticas de alguns estados de uma forma bastante colonial.
Se puder aprofundar na descaracterização e desmonte da política LGBT+…
Então, alguns exemplos do que foi destruído, né, em termos de proteção de direitos. A gente teve, em 2019, um “revogaço” dos conselhos participativos.
Foi celebrado pelo governo federal como um processo de desburocratização da política, etc. O que a gente viu foi um entrave muito grande para a participação da sociedade civil em órgãos participativos.
O Conselho Nacional LGBT foi absolutamente desfigurado, né? De forma a perder a sua característica participativa, que vinha se consolidando há um bom tempo.
A gente vê uma cultura do desagendamento das políticas sociais, até mesmo anterior ao governo Bolsonaro, mas que tomou uma proporção muito grave no governo Bolsonaro, a partir dessa reconfiguração de órgãos ou de instituições que, historicamente, estavam trabalhando na proteção e na promoção dos direitos fundamentais.
Um ponto importante também foi a participação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos na Comissão de Altas Autoridades do Mercosul sobre Direitos Humanos.
Uma reunião na qual a representante do ministério enviada, que era a diretora da pasta LGBT do ministério, vota contra a inserção de termos como homofobia, transfobia no escopo de compreensão institucional do Mercosul sobre o que seria uma violação de direitos humanos.
Bom, isso já é um retrocesso muito grande. O Brasil veta essa ampliação categórica do reconhecimento dos direitos humanos a partir de uma funcionária do ministério.
Uma coisa importante de se falar também é que houve uma modificação na Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, uma modificação no próprio escopo de entendimento do que seriam violações aos direitos humanos que poderiam ser denunciadas a partir dos instrumentos de denúncia, como os Disque 100 e o Disque 80, que é específico para violência contra a mulher.
Nessa reformulação, que inclusive está ainda vigente, havia uma categoria de agravante de motivação de uma violação aos direitos humanos que era a ideologia de gênero.
A ideologia de gênero se torna por um tempo uma gramática estatal, à medida que ela é colocada para operacionalizar uma perseguição a agentes públicos que estariam supostamente agindo em nome da tal da ideologia de gênero, mesmo que não exista qualquer tipo de consenso sobre o que significa a tal de ideologia de gênero.
A gente sabe simplesmente que é “algo que precisa ser combatido”, ninguém sabe nem porquê.
E aí figura um certo pânico social a respeito de banheiros unissex, kit gay, mudança de gênero em crianças, coisas que não fazem parte da nossa realidade, mas que retoricamente funcionam muito bem.
Então essa categoria de agravante de motivação de ideologia de gênero fez com que a ouvidoria de direitos humanos, um órgão absolutamente importante para o Estado brasileiro, que produz estatísticas sobre violência que vão fomentar políticas públicas de prevenção da violência, se tornasse um órgão de perseguição principalmente de agentes públicos, do campo da educação e do campo da saúde.
Quais foram os legados do MMFDH?
Eu acho que a gente tem alguns principais legados. Dentre eles, eu destacaria essa disputa semântica, afetiva, emocional e até mesmo institucional sobre o que significa os direitos humanos.
Há dez anos a extrema direita brasileira rechaçava a ideia de direitos humanos e hoje ela tenta se apropriar de uma forma decorativa, como diz o Marco Aurélio Massimo Prado.
Então, a participação do movimento LGBT organizado no ministério é justamente uma forma de produzir consensos e não desentendimentos.
Eu diria que o primeiro ponto é a disputa em relação aos direitos humanos e essa tentativa de tornar os direitos humanos uma gramática utilizável pelos interesses da extrema direita.
Inclusive, temos exemplos recentes sobre a defesa de determinados atores da política que estão sendo julgados dentro dos limites da lei brasileira, mas cuja defesa se pauta por uma suposta violação de direitos humanos.
Justamente essas pessoas que passaram décadas se contrapondo à própria existência de qualquer tipo de universalidade do direito.
E aí, a política de ambivalência também é algo que o ministério deixa como legado.
Tem uma entrevista recente da Damares Alves na qual ela fala que é a favor de cotas trans sem dizer exatamente o que isso significa.
Cotas pra quê? Que cotas são essas? É muito fácil defender um significante sem explicar qual a materialização dele na realidade.
Nessa entrevista, ela fala que a condução ambivalente da política — claro, essas não são as palavras dela — mas a condução ambivalente da política é algo que precisaria ser levado a cabo nas próximas eleições federais.
Inclusive, nessa entrevista, ela elabora uma chapa.
Porque, bom, a extrema direita está com dificuldade de estabelecer os seus candidatos à medida que não se sabe muito bem quem são os herdeiros legítimos do bolsonarismo.
Mas a Damares Alves promove uma certa chapa que levaria, então, a cabo essa política de ambivalências em termos de convencimento político o que seria benéfico, nas palavras dela, para as eleições futuras.
Essa chapa seria composta pelo governador de São Paulo, Tarcísio, e Michele Bolsonaro como vice.
Aquele antagonismo violento que a gente via há uma década em relação às temáticas LGBT, quando o Bolsonaro dizia que filho gay era falta de porrada, etc., não vão estar presentes no discurso da Damares e também não no de Michele Bolsonaro.
Outro legado, nesse caso institucional, é a manutenção da nova taxonomia dos direitos humanos na Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos. É claro, a gente conseguiu retirar o termo ideologia de gênero do agravante de modificação, mas o resto da nova taxonomia está lá.
Então, houve uma mudança de governo, mas este instrumento que foi identificado por pesquisadores como um instrumento de perseguição política se mantém ativo.
E não houve uma modificação significativa neste campo de institucionalidade, do reconhecimento do que é uma violação na taxonomia.
Existe uma categoria de motivação para a violência relacionada ao sexo biológico, sem explicar muito bem como que isso se dá.
O que é uma violação motivada pelo sexo biológico não feminino? Conforme está escrito na taxonomia vigente hoje.
Sexo biológico não feminino se refere ao quê? A um homem cis? A uma mulher trans? Como que se dá essa relação entre sexo e gênero dentro desse documento institucional?
Então, sobretudo violações contrárias à população trans, que é a população que mais sofre violação de direitos em relação à sexualidade e ao gênero e não têm nenhuma garantia de proteção justamente no órgão que deveria fornecer inclusive, substrato para que a gente pense em políticas públicas para o desenvolvimento de ações protetivas para essa população.
Por outro lado, é importante lembrar que em janeiro de 2023, ou seja, o primeiro mês do governo, o governo Lula saiu do Consenso de Genebra.
O Governo Lula traz mudanças significativas nesse sentido?
O governo Lula tem uma forma de lidar com os ativismos da sociedade que seria muito diferente da política de ambivalência da Damares Alves.
Isso se verifica nos três governos Lula.
No entanto, é importante lembrar que o Estado brasileiro é composto por três poderes e, no caso desses embates que a gente tem hoje entre Executivo e Legislativo, existe uma quase proibição das temáticas de gênero e sexualidade.
Isso resulta em um certo impedimento para que essas políticas sejam levadas a cabo tanto em termos institucionais, quanto em termos de alianças políticas.
Isso é um problema que, para mim, tem íntima na forma como o governo Dilma lidou com as temáticas de sexualidade e gênero, sobretudo depois da polêmica do kit gay.
Mas, embora haja uma abertura muito maior à sociedade civil e à participação política desses atores no governo Lula, a gente não vê nenhum projeto do governo federal minimamente parecido com o Brasil sem Homofobia de 2004.
Então, 21 anos atrás, a gente teve um projeto que hoje é impensável.
O governo está meio que se equilibrando entre continuidades da prática antigênero gestada no governo Bolsonaro e entre algum tipo de reconhecimento político dos grupos de ativismo e das temáticas da diversidade sexual e de gênero.
A imprensa tem publicado que Damares “mudou de tom” e agora defende por exemplo cotas para pessoas trans. Damares é realmente uma “aliada”?
Não há exatamente uma mudança de tom.
O que há é uma especificidade do tom em cada nível de aparecimento público que a manifestação vai se dar.
A gente viu durante todo o governo que as manifestações feitas em lugares mais privados, como igrejas, se davam de forma muito mais antagônica em relação aos temas da diversidade sexual e de gênero.
Agora, manifestações públicas, como entrevistas no YouTube, foram geralmente espaços onde houve essa promoção de retórica mais conciliadora.
Então, nessa entrevista em que ela fala de cotas trans, ela se insere um pouco nessa lógica de disputa, aliás, de divisão de espaços para a promoção de determinadas narrativas.
Inclusive, isso aparece também em uma manifestação mais recente na qual a Damares, como senador da República, vai pedir perdão a determinados atores políticos da esquerda.
Tentando retomar um afeto político de antagonismo com o ministro Alexandre de Moraes para sustentar a ideia de que deveria haver uma anistia para as pessoas que participaram da tentativa de golpe no 8 de janeiro.
É uma mobilização retórica, uma mobilização afetiva que vai dizer muito respeito ao lugar de aparecimento.
Não há propriamente uma mudança de tom, há uma continuidade dessa diversidade de tons a depender do próprio intuito da manifestação, do qual público ela quer chegar.
Agora, se ela é uma aliada? Não, seguramente ela não é uma aliada.