Redação: João Gabriel Maracci. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil.
Neste final de julho deste ano, fomos surpreendidos por uma manifestação de Damares Alves, ex-Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Governo Bolsonaro e hoje senadora pelo Distrito Federal. Em uma entrevista, ela afirma ser favorável às cotas trans, diz ter afinidade com o “movimento gay” e profere muitas outras manifestações aparentemente carinhosas e amorosas sobre a população LGBT+ – o que contradiz com seus famosos enunciados de que “menino veste azul e menina veste rosa” ou que “menina será princesa e menino será príncipe”. Damares não aponta nenhuma mudança em seu entendimento sobre as temáticas de gênero e sexualidade; pelo contrário, apresenta este modo afável de reconhecimento e empatia como marca de atuação enquanto ministra e senadora. Há algo de estranho aqui?
Como afirma no vídeo que circula na internet, Damares recepcionou, em seu escritório no gabinete de transição para o início do Governo Bolsonaro, ainda no ano de 2018, importantes associações pró-diversidade sexual e de gênero, em um encontro que foi narrado por participantes como uma “porta aberta de diálogo”. Menos de um ano depois, contudo, foi a vez de recepcionar outro grupo, com pautas notadamente contrárias ao primeiro: os ex-gays do Brasil. Nesse encontro, igualmente narrado de forma positiva, deu-se legitimidade, por parte de um órgão institucional do Estado Brasileiro, a pautas como as terapias de conversão sexual para pessoas homossexuais e trans.
É visível a política de ambivalências mobilizada por Damares, atuando na neutralização de conflitos políticos a partir de manifestações de carinho, amor e benevolência sobre a comunidade LGBT+, especialmente às travestis. Em muitas manifestações da ex-ministra, as boas relações com os temas da diversidade sexual e de gênero foram frequentemente associadas ao combate à suposta “ideologia de gênero” – um termo sem qualquer respaldo científico que serve de aglutinador político para projetos de extrema-direita globais, calcados no repúdio às temáticas feministas e LGBT+. O que notamos, acompanhando os posicionamentos desde a sua nomeação como ministra, é justamente a tentativa de inserir na gramática estatal brasileira uma série de deturpações acerca de construtos históricos acerca dos direitos humanos – o que se tornou mais fácil frente às políticas de mitigação dos antagonismos com grupos diretamente afetados por suas intervenções.
Essa lógica foi nomeada pela própria Damares enquanto uma “proteção sem promoção” das temáticas relacionadas à sexualidade e gênero – uma lógica política que foi estudada de perto por integrantes do NUH – Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania da UFMG e da Sexuality Policy Watch (SPW). Acompanhando a atuação política de Damares desde o final de 2018, percebemos como a lógica de “proteção sem promoção” se efetivou como uma destituição formal de importantes políticas do Estado Brasileiro acerca dos direitos humanos, especialmente relacionadas à comunidade LGBT+, paulatinamente acompanhada de discursos amorosos e afáveis da então ministra. Além disso, foi notável a participação de grupos de ativismo LGBT+ diretamente implicados na efetivação dessa política – o que talvez se configure como um dos momentos mais tristes para a história desta militância no Brasil.
Na esteira deste processo, o então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos se negou a assinar um documento do Mercosul que incluía os termos “identidade de gênero”, “expressão de gênero” e “crimes de ódio” entre os itens a serem considerados no escopo dos direitos humanos dos países signatários do bloco. Ainda no campo transnacional, observou-se intensa participação de atores do ministério na ampliação e no fomento de associações ultraconservadoras, como o Consenso de Genebra — grupo composto por países governados pela extrema-direita e voltado a pautas como a proibição do aborto, o impedimento dos estudos de gênero e sexualidade e o não reconhecimento de formações familiares não heterossexuais. Soma-se a isso a presença ativa do Brasil no Political Network for Values, organização internacional dedicada à articulação de políticas ancoradas em valores considerados “pró-vida” e “pró-família”, e no Breakfast for Prayer, evento com forte componente religioso que reúne lideranças conservadoras globais sob o mote da fé cristã como orientação para a política.
Além disso, houve flagrante censura e perseguição de agentes públicos vinculados à suposta “ideologia de gênero” pelo MMFDH face a deturpações realizadas na Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, inserindo a categoria “ideologia de gênero” como uma violação de direitos humanos no novo manual de taxonomia. Sem falar no desmantelamento da pauta LGBT+ no Governo Federal de modo mais amplo – por exemplo, a Diretoria de Promoção de Direitos LGBT que Alves orgulhosamente menciona no vídeo, supostamente responsável por uma política de proteção das pessoas LGBT+, na realidade foi desfigurada em 2021, perdendo o protagonismo sobre diversidade sexual e de gênero até mesmo em seu nome.
Essa seria a “proteção sem promoção” de Damares Alves, que desde o início do Governo Bolsonaro atuou na distorção e na depuração de políticas de Estado em nome do combate à suposta “ideologia de gênero”. O que não a impediu de dizer, como no vídeo que rapidamente se tornou popular nos últimos dias, o quanto ama e admira a comunidade LGBT+ e se sente próxima das travestis. Assim vemos a quais interesses servem as demonstrações de carinho da atual senadora da República, bem como a notória redução do campo dos antagonismos políticos por ela efetivada – que permitiu que o ministério “passasse a boiada” da extrema direita no campo dos direitos humanos, para utilizar uma linguagem cara ao bolsonarismo.
Uma das questões centrais desta recente entrevista é demonstrar como, mesmo após o governo de Jair Bolsonaro, a lógica antigênero deflagrada em seus organismos institucionais permanece ativa a partir de outros lugares que não o Poder Executivo. Damares Alves, enquanto senadora, afirma atuar na continuidade da política construída no MMFDH, e ainda aponta que esse será um tema a ser explorado nas próximas eleições presidenciais. Aguardemos os próximos capítulos.
Algumas publicações sobre o tema:
- No texto Direitos humanos, gênero e sexualidade: uma ministra que não brinca em serviço, Rajnia de Vito e Marco Prado (2019) discutem sobre a depuração da pauta dos direitos humanos em uma gramática conservadora pela ex-ministra Damares Alves nos 100 primeiros dias de governo bolsonaro.
- No relatório Ofensivas Antigênero no Brasil: Políticas de Estado, Legislação, Mobilização Social (2021), elaborado em parceria com pesquisadoras(es) e ativistas, apresentamos um panorama da presença dessas políticas no interior do Poder Executivo Federal durante o governo Jair Bolsonaro.
- No artigo Governamentalidades e Depurações Hierárquicas dos Direitos Humanos no Brasil: A Educação Pública e a População LGBT+ (Prado, Maracci & Monteiro, 2021), analisamos a inserção das ofensivas antigênero no Estado brasileiro, apontando a ausência de projetos voltados à redução da violência homofóbica e transfóbica no campo da educação, em paralelo às declarações ambíguas e afáveis da ministra.
- No artigo Ofensivas Antigênero e a Depuração dos Direitos Humanos como Política de Estado no Brasil (Maracci & Prado, 2022), demonstramos como o MMFDH contribuiu para a desfiguração do campo dos direitos humanos por meio da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, que passou a operar como um aparato de vigilância e censura voltado a servidoras(es) públicas(os) associadas(os) à chamada “ideologia de gênero”.
- O texto ‘Ideologia Familista’ nas Ofensivas Contra Gênero na Educação: Conexões Conservadoras Transnacionais” (Corrêa & Prado, 2024) mapeia os atores da ofensiva antigênero no Brasil e analisa como a categoria “ideologia de gênero” foi traduzida para o vocabulário estatal em nome de ideais normativos para a infância e a família.
- Além dessas publicações, sistematizamos o Banco de Informações das Movimentações Estatais Anti-Gênero no Brasil (2019-2022), com mais de 600 documentos e 500 imagens, disponíveis no site do NUH.
- Por fim, a tese de doutorado “Proteção sem Promoção”: Ambivalências Antigênero no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Governo Bolsonaro, de João Gabriel Maracci (2024), investiga a mobilização ambígua de afetos e emoções por parte de Damares Alves e seus efeitos na desconfiguração institucional dos direitos humanos no Brasil, especialmente no que se refere à população LGBT+.
Outros materiais, como novos artigos e relatórios, estão em fase de finalização ou publicação e serão divulgados em breve por meio de nossas redes acadêmicas e ativistas.